sexta-feira, 2 de dezembro de 2016






Esse metal que traz em suas mãos e me queima, é o que?
Qual material é esse que me fere a pele?
Ouro? Bronze? Amianto?
Carrega em teus dedos, mas eu, tonta, não sei nunca em qual mão está.
Parece que se move, tem autonomia.
Escapa de minha defesa e me queima mais uma vez.
Corta a fina pele dos mamilos, marca minhas coxas.
Desse metal fino que tem em teus dedos, não conheço a cor.
Não posso olhar que arde a vista.


Talvez seja, na realidade, imóvel. Talvez sejamos nós que nos movimentemos muito, nos enrrosquemos de tal modo que esse pedaço de lata se confunda em sua perseguição. Se assim for. Se assim for, ah, meu amor,  é possível que reste, então, uma linha de fuga para mim. 

segunda-feira, 3 de outubro de 2016

Tchau

Meia torrada
com manteiga.
Um só pé de
sapato
e somente uma
lente dos óculos.
O pássaro,
na janela
não voa,
apenas uma
asa e o copo
não enche.
A faca já
não corta,
é só o cabo.
Não visto
calças
de uma perna só,
assim, como
não pego
ônibus partido
ao meio.

Desculpe, meu bem, mas a vida, eu vivo inteira.
TARDE

À noite, pouco antes da hora de dormir,
procurei por tua presença em meus lençóis.
Procurei se havia deixado uma marca qualquer.
Uma mão que fosse,  impressão no travesseiro.
Ou uma gota no lençol branco.
Não havia nada.
Procurei, então, em minhas mãos.
Quem sabe uma marca de teus cabelos
ou um linha desenhada por teus dentes?
Nada.
Na língua, talvez, pois lambi o suor de tua testa.
O gosto não estava mais.
Adormeci e, do silêncio, um sussurro quase inaudível.

Era a tua garganta que derramava ainda um gemido em meus ouvidos.

terça-feira, 30 de agosto de 2016

Navegador de tronco
oco
barqueiro das almas
esquecidas
Segue um rio de pedra
e chão.
Margem seca
Risco-fluxo.
Caronte
Carrega espectros
adormecidos.
Carranca.
Dentes escancarados,
sorriso constrito.
Carranca Caronte
Segue posta à frente
traz talhada no peito
a careta da madeira.
Abre caminhos
conduzindo mortos.
Canoa desvairada
cria o correr do rio.
Água de enxurrada
branca espuma.
Ancorada nunca.
Leva em seu dentro (árvore cavada)
a placidez enganosa de um lago que se foi.


segunda-feira, 29 de agosto de 2016

Madrugada

Las cosas que la visitan en la noche.
Fiebre
La dolor
Las pesadillas
Los gritos
Las cosas que la abandonan al la mañana
Fiebre
La dolor
Los gritos
Y Los días.







Veio o poema
afogado.
Aportou em meu corpo
encharcado.
A tinta da letra se desmanchava.
Borradas, duas palavras escorreram pelo meu
umbigo.






         







            


A vida é filme. A vida é filme e era melhor que não fosse. 
Filme dói demais, tem vezes que dói demais. 
Uma trilha e a cena vazando pra vida e não sobem os créditos 
e não acaba e vai amargando muito tempo ainda pela calçada. 
A vida é filme e ninguém grita corta. 
Estava lá eu e ele, uma mesa de plástico. 
Desculpas e um silêncio que dispersa a atenção, 
faz fugir a atenção, silêncio porque não tenho mais o que dizer.  
Só repito não suporto mais, quebrei. 
Tenta mais, não faço mais. 
Quebrei, não tento mais, não tem mais eu, quebrei. 
O silêncio e um carro passa 
e dá pra ouvir a voz do Nat King Cole “unforgettable” 
justo na hora do silêncio. 
Externa - dia - calçadão. 
Unforgettable justo na hora que você, ele, repetia: desculpa. 
Não vai pra muito longe e me desculpa, tenta. 
Quebrei. Aqui é o silêncio. 
Isso aqui é silêncio, porra. 
Diria se fosse uma torcida, se fosse um jogo. 
Vai embora. Não vou. Levantam os dois. 
Um beijo. 
Obrigada por dividir sua alegria comigo 
e desculpe ter estragado tudo. 
Me quebrou de novo, o que restava. 
Não se desculpe. 
Espatifamos tudo juntos. 
A vida é filme e o casal se separa no calçadão de Ipanema, 
ele pede desculpas, agradece. 
Por dividir sua alegria comigo. 
Ele não tinha nenhuma. Talvez. 
Saio chorando e um menino gordinho, 
negro, sorri e diz não chora, não, princesa. 
Não sou princesa, sou o monstro, o bufão, então eu choro. 
E demora muito, a calçada demora muito, 
o meio do dia demora muito. 
E a vida é filme, mas tá sol. 
E não tem mais alegria nenhuma pra dividir. 







Sinto saudade das cartas
que chegavam pela manhã.
Quase todas as manhãs,
mesmo que à tarde.
Os olhos ainda ardidos, as pálpebras colando, a vista embaçada.
O que me provocava
a ler uma vez mais,
mais tarde.
Sinto saudades até do silêncio de uma manhã de sexta-feira.
Quando já não chegavam cartas

e você havia desaparecido.
Queria poder dizer,
uma vez ao menos,
o quanto a garganta quer fazer
a boca falar aquilo que não me atrevo.
Queria dar autonomia aos órgãos
(mesmo os que ignoro) para dizer
o que não penso.
Queria que alguma força falasse,
apesar de mim mesma.
(será que isso existe?)
Quero um dia
enfim dizer.

O quanto me faria feliz a tua doce companhia.

Ele disse não quero estar sozinho.
Ali no meio da sala, ou foi na praça do chafariz
junto a menina que virou chinesa.
Ele disse  tudo e se calou
Ele disse e não teve graça
E eu fiquei olhando
quietinha.
Na moleza de nem precisar dizer
psiu, to aqui.


E, então, a distância se faz salgada
como toda essa água que toma conta da cidade
e das paredes do quarto.
A umidade que vai cercando os tornozelos.
O sal do oceano que me separa.
Ainda no guardanapo ou no prato sujo.
De papel.
A garganta seca
e tanta água subindo pelas pernas.
Pingando dos telhados.
e ainda assim

insuficiente.
Ela anda de calças vermelhas e camisa rosa shok.
Quando termina qualquer coisa que esteja escrevendo,
ouve música alta, muito alta e dança pela sala.
Dança de um jeito que só ela dança quando acaba de escrever qualquer coisa e vai pela sala.
Ela dança Bach, Beto Barbosa, vai saber o que ela ouve quando dança daquele jeito que só ela dança com suas calças vermelhas.
Mas só é assim quando ela quer, quando não, não tem dança e ela vai embora. Porque quando ela diz não fico,
ela vai embora e ninguém dança em seu lugar,
ninguém veste suas calças vermelhas.
Ela as leva consigo, as calças, as danças.
Aliás até o vermelho, ela leva consigo.
Deixa pra trás só um papelzinho com um escrito:  
Parce que moi je rêve, moi je ne le suis pas.


Catraca.
Tenta passar. Empaca.
Trava. É a vida da catraca.
Tenta passar. Para.
Tá faltando a paga.
Trinca a língua. Trava.
Tirou a carta trancada?
Maluco,  pula essa danada da catraca.




Ainda hoje pensei em ti.
Foi um pensamento quase sem querer.
Olhando da janela do ônibus,
uma poça no meio fio,
o olhar distraído.
O pensamento saiu de banda e foi esbarrar contigo.
Sem querer qualquer coisa,
não que se diga.
Sem pretensão de poder nada.

Apenas talvez um braço que desliza, uma voz no ouvido, ou um pescoço para lamber.

E me veio a notícia de seu corpo. O destino de seu corpo. Luiz Maranhão, o amigo de meu avô, teve seu corpo incinerado em uma usina de açúcar no norte do Estado do Rio de Janeiro. O moço que gostava de cachaça com caju. Seu rosto retornou uma vez mais, durante a noite, em um jornal qualquer. Não disseram seu nome, mas o vi, o reconheci e mais uma vez ele olhava para mim. O rosto de Luiz. Seu corpo queimado. O homemdelegado, monstro-homem-comum. Esse aí. A banalidade do mal encarnada num corpo grisalho e mole, disse “era preciso fazer desaparecerem completamente”. Pois não fizeram. Seu bosta, como diria minha vó. Seu bosta, Luiz desapareceu, mas não completamente, seu rosto retorna. Seu corpo virou cinza e fumaça, subiu leve, leve pelo céu, caiu nas folhagens secas do norte do estado. Rio de Janeiro. Tão feio o norte do estado que conheci, mas o de Luiz embonitou com sua dança de brasa e cinza. Os pequenos pontos luminosos. Agora eles, os pontos e o corpo, não caem, mas sobem ao céu. E quem disse que não era possível? Luiz terminou no céu. Ele estava morto, ele está morto, mas não sem vida. É diferente. É como meu avô. Meu avô está morto e não soube o fim da história de seu amigo. Mas meu avô não está sem vida. Tem vida ainda. Por aí. Ele, Luiz, tantos outros. Vida feito espuma do mar, feito cinza e poeira fina. No jornal não disseram seu nome. Mas eu disse. Digo. Quando lhe vi, gritei como quem reconhece um velho amigo no meio da gente. Luiz! Eu disse seu nome. Repito agora. bem baixinho. Repito enquanto escrevo: Luiz.