quarta-feira, 24 de junho de 2009

V.

Corte reto e perfeito, risco diagonal na face esquerda.

Pequeno traço que lhe empresta a dureza de um passado

Marca de um corte, rastro de uma queda na infância

ou uma discussão mal sucedida depois de um jogo

um alguém que não gostou de ser abandonada

Ou apenas embriaguez e uma garrafa de vidro

Não conheço o passado do homem com a cicatriz no rosto

O que vejo é apenas o homem e seu rosto partido

O que desejo é apenas deixar a boca levemente aberta

junto àquela cicatriz, caso venha a sangrar novamente.

terça-feira, 23 de junho de 2009

O sujeito que não conheço

 

Andava arrastando os pés, apoiado por uma bengala alta

Talvez o equilíbrio precário viesse de uma velha falta

Quando menino pensava em ser meteorologista

A vida veio de banda e fez dele dentista

Não soube precisar seu desejo

Seguia esperando o lampejo

de luz fraca em alma vazia

Entre uma ideia e outra se aprazia

Arrancando distraidamente de moças os dentes

Sem nunca imaginar um dia poder ver-se contente

Sujeito que desejou examinar cúmulos nimbos e estratos

Passa os dias a prever das bocas futuras extrações dos tártaros

Acreditou que se olhasse para si mesmo bem no fundo

Poderia reagir e a qualquer hora ganhar o mundo

Permanecia no encardido do consultório

Sonhando em passar noites em algum frio observatório

Espera ainda em silêncio pela hora em que os desejos voltem

O instante um que seus gestos cresçam e se notem

Quem sabe da janela soprará um vento do sul

Que o descubra de seu trajes opacos e o deixe nu ou todo vestido de azul.

quinta-feira, 18 de junho de 2009

Educação

Vivíamos eu mais ela. Da casa , não guardo memória. Só o sol e o concreto da garagem. De certo, havia parede. Mais adiante me lembro da sala. Espere e veja. Leia. O pai não tinha. Havia existido no momento de existir. Depois fumaça e o nome João. João tem tantos. João tem de montão! Sopa de beterraba também era abundância. Fortalece o sangue. Crescia pensando pra que tanto sangue. A conversa era pouca. Rarefeita. Durava o tempo da mesa posta. Comia rápido. A palavra era escrita. Eu olhava. Era tanta letra.
Noite dessas ela falou. Bem podia ter alguém mais aqui. Só nós duas presta mais não. Muito feminino. Era bom um alguém homem. Só para estar. Sei lá. Precisava nem rosto. Madeira. Falou e se esqueceu. Ela era assim: falava a duração do tempo de estar por perto. Depois se entretinha. Ia embora.
Foi no outro dia. Outra página, sei não. Mirei o canto da sala e estava lá. O dito. Homem sem rosto. Não falava, nem olhava. Avisei a ela. Você falou. Ali. Agora existe. Tá por aqui por essas páginas. Deu os ombros.
O bicho, não sei se era. Madeira. O chão rangia ao seu andar. O bicho se arrastava. Me seguia às vezes. Lembrava de meu cão. O Biu. Incumbência.
- Você come, bicho? Dizia nada.
Dei para lixar ele. Esculpir. Fazer do dito, visto. Passou ao irreconhecível. Era coisa sem nome. O que não se nomeia vagando pelo mundo, sem canto. Sem estante. O algo iniciado por minha mãe. Ela deu. Largou a frase pelo meio. Nela um ganchinho de vazio. Preencheu. Preenchi.
Distraídos.


O casal vivia naquela pequena casa desarrumada. Viviam ali sem muito se preocupar, os objetos iam se aglomerando pelos cantos. Um dia achavam uma gravata que ele julgara perdida ou uma meia da qual ela nem se lembrava e riam contentes como tivessem ganho um presente novo. Os amigos que iam visitar estranhavam de começo, mas depois se acostumavam com a bagunça e até gostavam, era como um retorno a seus quartos de adolescentes. Passando-se os meses ela começou a incomodar-se. Foi depois de uma jantar na casa de outro jovem casal. Quero arrumar a nossa casa. Estantes para os livros e roupas dentro do armário. Passou algumas semanas nessa empreitada, tentava organizar os livros espalhados pela mesa e pelo chão, mas não podia. Que critério adotaria? Biografias em uma prateleira e ficção na outra. Mas a biografia não é também uma ficção? Pedia ajuda a ele, que concordava e ia alem: outra coisa, não é justo deixar Virginia Woolf na mesma altura de John Fante. Mas, eu botei Conrad no meio pra deixar ela protegida. Ah, não sei, ela devia estar com Clarice. Lá vem você com essa história de escrita feminina! Não é isso... Assim se distraiam e os livros continuavam espalhados, as camisas por cima dos livros, as gravatas escondidas e as meias esperando o próximo natal. Foi de um amigo próximo que veio a idéia de ter alguém em comum para cuidarem, um terceiro que os tornaria responsáveis, certamente não entenderam a que terceiro se referia o amigo e compraram um peixe. Aquário limpo, peixe dourado, comida apenas uma vez por dia, sabiam que peixes têm memória curta e se esquecem que já comeram. Divertiam-se com o débil olhar de sua nova aquisição, chegaram até e se apegar ao bicho. Mas nunca pensaram em repor a água do aquário e o pequeno foi tendo seu espaço reduzido, até chegar a um dedo de água. Quase nadando de lado, o pobre. A amiga comentou: acho que esse peixe aí não tá muito bem. Ela deu com os ombros, já se distraia com outra coisa, ele nem ouviu. Um dia ela se lembrou e perguntou, cadê o peixe? Ele tava meio estranho e botei um pouquinho no sol pra ver se animava. Na varanda o cadáver boiava em um pouco de água quase fervendo. Ih, acho que morreu. Quem? O peixe. É... morreu sim. Tem que jogar fora. Onde? Sei, lá. Privada. É. Qualquer hora eu jogo. E mais uma vez eram levados a outra direção e se esqueciam. Foi assim entre distrações e esquecimentos que ela foi embora. Ele nem percebeu. Num dia de muito silêncio na casa, ele foi até a varanda, talvez a procurasse, encontrou o peixe numa água podre e pensou: rapaz, isso ainda está aqui! Entornou o líquido na privada e foi ouvir aquele disco do Jorge Ben.

segunda-feira, 8 de junho de 2009